Todo guri que vive na roça
é tinhoso por natureza. Não era diferente com o Quim. Sua vida era muito
agitada. Levantava às 5h da manhã para ajudar o seu pai na lida. Tratava das
galinhas, dos porcos e limpava o curral das vacas. Isso tudo antes de ir para a
escola rural. Caminhava cerca de dois quilômetros até lá. No caminho encontrava
os outros guris e iam contando histórias e brincando. Ele tinha um amigo
inseparável, o Miro. Estavam sempre juntos, aprontando as mais diversas
traquinagens. Na sala de aula era prejuízo ficarem próximos. Inteligência não
lhes faltava, esperteza nem se fala. Mesmo com essas qualidades, não eram
considerados bons alunos, pelo contrário, eram tachados de alunos problemas.
Aquela
manhã foi marcante para o Quim. Estava atrasado, e pelo caminho imaginava as
desculpas que daria a sua professora. Seu repertório de mentiras estava
esgotado. Tinha matado vários parentes, deixado doente várias vezes, seus
irmãos e pais, até o Miro entrava em suas histórias, pobre Miro, uma espécie de
fiel escudeiro, um verdadeiro Sancho Pança. Admirava o amigo e aprovava tudo
que este fazia. Não discordava nunca
Chegou
à sala, para sua surpresa a professora não estava. Os colegas todos sentados de
cabeça baixa, inclusive o Miro. Stella a mais inteligente da turma estava com
os olhos vermelhos e encharcados de lágrimas. Ficou estático, não teve coragem
de perguntar.
Depois
de alguns minutos o diretor entrou na sala para dar explicações, pois corria o
boato de que Dona Mariana havia morrido. Com ar solene transmitiu a dura
notícia. Ela, a professora querida, não morrera, mas estava gravemente ferida,
pois sofrera um acidente automoblístico e podia nunca mais se mover do pescoço
para baixo. Pela primeira vez Quim sentiu vontade de chorar, seu coração de
menino sentiu o golpe. Lembrou-se que no dia anterior tinha aprontado uma das
suas e a professora saiu triste da sala por causa disto. Pesou em sua mente um
sentimento de culpa e arrependimento. Ele gostava dela. Foram dispensados das
aulas.
A
alegria saiu do ar, não brincou pelo caminho, não zombou do Miro, esse, aliás,
estava taciturno, e de súbito começou a chorar. Quim não sabia o que fazer.
Isso não era comum, só choravam quando se machucavam nas suas traquinagens.
Pobre Miro, desmoronou. Sentados, sem saber o que dizer um para o outro,
choraram juntos.
Passou
um carroceiro em direção ao sítio onde viviam e deu-lhes uma carona e perguntou
porque estavam tão tristes. Contaram a história, o que havia acontecido com a
professora e a sua situação, ficar tetraplégica. O carroceiro não falou mais
nada, pois Dona Mariana fora a sua primeira professora. Desceram da carroça e
cada um foi para sua casa levando a sua dor.
Meses
se passaram, uma substituta ocupou o lugar de Dona Mariana, mas não ocupou o
seu lugar no coração dos alunos. O Quim já não brincava mais, não aprontava,
vivia o tempo todo calado. O acidente da professora causara um impacto profundo
em sua vida. As noticias não eram boas, realmente ela fora parar numa cadeira
de rodas e tinha agora sua vida limitada e para viver dependia das outras
pessoas. Muitos alunos foram visitar a mestra, menos o Quim e o Miro. O Miro
porque seguia os passos do amigo, ainda não havia se desprendido.
Quim
não tinha coragem e visita-la, pois a entristecera muito com suas atitudes.
Tinha receio dela não aceitar sua visita. O fim do ano chegou, as aulas
terminaram e cada um foi curtir suas férias e as festas natalinas. Mas antes
disto todos os alunos da turma de Dona Mariana foram visita-la. Ele não foi,
pediu ao Miro que fosse e entregasse a ela uma carta. Ela ficou muito feliz em
ver os seus pupilos. Foi difícil conter as lágrimas. Olhou e reparou que o seu
aluno arteiro não estava com o grupo e perguntou por ele. Miro lhe disse que o
amigo estava envergonhado e não tinha coragem de vê-la, por isso mandou uma
carta.
Sua
filha mais nova buscou rapidamente seus óculos, abriu o simples envelope e
posicionou a carta diante de seus olhos. Uma lágrima, depois outra. Silencio.
Lágrimas corriam de seus olhos.
“-
Querida professora,
Sei
que a senhora se aborreceu muito comigo. Não fui um bom aluno. A senhora pode
num acreditá, mas faz muita falta pra mim. Tudo que a senhora falava nas aula,
ficô guardado na minha cabeça e depois do seu acidente saltaram diante de mim
como uma lebre. Isso me fez muda bastante. Num fiz mais bagunça, num falei
palavrão. Tirei boas nota. Pena que a senhora não pode vê.
Todos
os dia eu rezo pro papai do céu curá a senhora. Me perdoa e desculpa os meu
erros de português.
Ti
amo.
Joaquim
dos Santos”
Um
silêncio pairou no ar. Ninguém por minutos disse sequer uma palavra. De repente
a velha professora olhando para todos naquela sala, com uma voz doce misturada
com emoção disse:
-
Tinha dezoito anos quando fiz o meu juramento em relação ao magistério. Prometi
que iria exercer minha profissão com amor, respeito e ética. Sempre acreditei
no meu papel. Muitas gerações de meninos e meninas passaram pelas minhas mãos.
Muitos tornaram-se pessoas honradas e bem-sucedidas. Hoje ao ler esta carta
tive a certeza de que sempre estive certa. As palavras têm poder e a educação é
o caminho para a transformação de uma sociedade. Quero ver o Quim para
dizer-lhe que valeu a pena.
Dias
depois, lá estava ele. Aproximou-se da sala cabisbaixo, com vergonha. Ficou
aguardando a chegada de sua mestra, até que alguém empurrando a cadeira de
rodas a deixou a sós com ele. Com ternura na voz e um rosto de fada lhe disse:
-
Querido, venha até aqui e me dê um beijo.
Numa
atitude de reverência prostrou-se diante dela, beijou-lhe as mãos imóveis e seu
rosto banhado pelas lágrimas. Com muita dificuldade soltou a voz dizendo:
-
Pro...professora, me perdoa por não ter sido um bom aluno, pelas tristezas que
lhe causei.
-
Não precisa pedir perdão. Respondeu ela. Só quero que me prometa que estudará
bastante para se tornar um grande doutor.
-
prometo.
Antes
de sair deu-lhe uma toalhinha que fora bordada por sua mãe, onde estava
escrito. “Eu te amo, mestra querida”. Com a qual a professora enxugou as
lágrimas.
Anos
se passaram e o menino Quim tornou-se homem, formou se em Direito e no dia de
sua formatura fez o discurso, e no fim, após todos os agradecimentos, com a voz
embargada lembrou-se de Dona Mariana e disse:
-
Convivi com um anjo, que na mais profunda dor me ensinou uma grande lição. Hoje
estou cumprindo a promessa que lhe fiz. Dona Mariana a senhora foi o meu grande
referencial, sou mais um que foi transformado por suas sábias palavras. Muito
obrigado.
A
plateia inteira aplaudiu o gesto do futuro Dr. Joaquim dos Santos, hoje juiz de
Direito, inclusive o Dr. Waldomiro Moraes de Castro, aquele que sempre fora o
fiel escudeiro do amigo, o menino Miro.
Autor:
José Geraldo da Silva
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