domingo, 15 de setembro de 2024

CRÔNICAS DE SALA DE AULA

 

crônicas de sala de aula

BOLA DE GUDE

Era uma barulheira danada, a criançada se reunia no campinho de terra que ficava no final da rua. Cada um com a sua latinha cheia de bolinhas de gude, era um festival de cores e tamanhos.

Faziam as burcas, estabeleciam as regras, que na maioria das vezes eram quebradas. Brigas, palavrões inocentes eram partes do espetáculo. Bolinhas que quebravam, e muitos que voltavam para casa com suas latas vazias. Mas no outro dia estavam lá de novo.

Que saudades dos campinhos de terra, que saudades das bolas de gude. Hoje estão na lembrança daqueles que de fato viveram a sua infância e sabem o que é uma bola de gude.


José Geraldo da Silva


A BORRACHA


Era uma discussão sobre quem era o mais importante na construção de um texto, estava o lápis, a caneta e a borracha.

O lápis disse todo garbosos:

- Eu dou o pontapé inicial, sem isso não há texto, preparo o rascunho.

A caneta, mais vaidosa ainda e com empáfia, disse:

- Quem finaliza o serviço sou eu queridinho; o texto só é finalizado com minha atuação.

A borracha, acanhada, pensou, pensou e com humildade desabafou:

- É meus amigos, quem apaga as bobagens que vocês fazem sou eu, se isto não acontecer o texto pode ser apenas um pretexto; e mais, tenho saudades das mão talentosas que nos usava com maestria e eu não sofria tanto. Portanto, toda esta discussão não passa de devaneios. Prestem atenção, sem um de nós não haverá texto.

Houve silêncio e cada um se pôs no seu lugar.


José Geraldo da Silva


CAIXAS D'ÁGUA


Tirar água de poço é tarefa muito interessante. Joga-se o balde, que desce fazendo barulho, sendo preso por uma corda. Quando sobe, vem chorando ao sentir a força da corda lhe puxar. Tem até poesia neste ato.

Com o tempo o balde e poço foram substituídos pelos encanamentos das companhias de abastecimento. A poesia do balde acabou dando lugar para as caixas d'água. Elas têm vários tamanhos, de acordo com o cliente. Não se ouve mais o gemido dos baldes, e sim, o barulho das torneiras.

Para as caixas d'água encherem, precisam apenas da pressão dos encanamentos, que não trazem encantamentos. As caixas ficam no alto das casas e não embaixo. Elas não trazem a saudade dos tempos dos poços e dos baldes, que traziam aos homens o tesouro escondido no subsolo, que enchiam os olhos de alegria com o liquido precioso. Nos poços não se pagava pela água, nas caixas d'água o preço dói no bolso.


José Geraldo da Silva


CARTAS


Naquela caixa antiga, envelhecida pelo tempo, guardavam-se segredos, histórias, amores e saudades. Estavam todas elas amareladas, amarrotadas e fragilizadas.

Estavam amarradas por fitas, por temas e por lembranças. Posso imaginar, quão lindas histórias foram relatadas por elas. Fico bastante tempo contemplando-as.

Que saudades! Hoje elas estão em um museu para que as pessoas se lembrem como eram as cartas.


José Geraldo da Silva


MOCHILA


Já não havia mais espaços nela de tantos bótons que carregava. Desbotada pelo tempo, pequenos rasgos, mas isso não importava, na hora da nova aventura ou de uma nova viagem, lá estava ela de novo nas minhas costas.

Por muitas vezes cogitei em trocá-la, mas não conseguia. Era parceira de muitas histórias e de aventuras. Ela envelhecia, como eu envelhecia também.

Até que um dia os tempos de aventuras acabaram e a responsabilidade chegou, tanto eu como ela deixamos de planejar novos caminhos. Enfim, aposentei a velha mochila que tantas saudades me traz.


José Geraldo da Silva





 


 





segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

TEU OLHAR


Azul, assim é o céu
Nas manhãs de verão
Meus olhos ficam parados ao léu
Como se olhasse em vão
Sem poder esse azul contemplar
Como se perdesse a visão
Parado diante do teu olhar
Como se fosse por medusa enfeitiçado
Sem poder palavra nenhuma professar
Perdidos na ilusão, paralisados
Assim ficam meus olhos
Perdidos no espelho reluzente
Sem meu rosto contemplar
Perdidos no azul da cor do mar
Perdidos nos olhos a me enfeitiçar
Parado, calado e enfeitiçado
Assim fico diante do teu olhar

          José Geraldo da Silva



ENCONTRO ETERNO


Todos os dias pela manhã Santiago saía de casa para caminhar. Depois de fazer sua caminhada matinal ia para a lanchonete do bairro para tomar seu café. Isso fazia por anos, logo depois da morte de sua esposa. Numa dessas manhãs ele teve uma surpresa, uma nova funcionária havia sido contratada para servir as mesas. Ele ficou impressionado com os olhos dela. Alguma coisa de diferente havia naquele olhar. Algo que ele não sabia como explicar. Mas aquele olhar lhe trazia um certo fascínio.
Santiago sempre fora uma pessoa introspectiva. Não era de muita conversa, e depois da morte da mulher ficara mais calado. Tinha pouco mais de cinquenta anos, apenas um filho, este já casado. Parecia que não tinha muito ânimo para viver. Já não se arrumava com elegância. Mas a presença de Victória na lanchonete, esse era o nome da nova atendente, mudou o seu olhar.
Ele se aproximou da moça, ela era bem mais nova do que ele, e começou a conversar com ela. Começou a frequentar a lanchonete com uma aparência melhor, parecia que havia rejuvenescido. Seu olhar era outro, havia um brilho novo em seu rosto. Victória retribuía, e aos poucos foram ficando íntimos. Começaram um relacionamento. Começaram também a enfrentar os preconceitos das pessoas, principalmente por causa da diferença da idade entre eles.
O olhar de Victória deixava Santiago muitas vezes confuso. Ele não sabia explicar o porquê. Havia algo naquele olhar, algo familiar. Nasceu entre eles uma grande paixão. Passavam as tardes juntos. Conversavam sobre a vida, sobre planos, sobre o futuro. Viviam suas tardes como se os minutos fossem uma eternidade. Se entregaram ao amor intensamente. Quem os via ficava impressionado com tanta harmonia e comunhão. Ela o ouvia, como se ouvisse um mestre, um sábio que lhe ensinava coisas importantes sobre a vida. Ela o admirava.
Mas aquele olhar, meu Deus! Aquele olhar. Santiago queria entender. Não havia explicações por que tanto fascínio. Ele sentia além da paixão, muita ternura por ela. As tardes foram se transformando em dias juntos. O vínculo entre eles a cada dia aumentava mais. Ele se sentia bem, como se a vida começasse de novo. Como se lhes estivesse dando uma nova oportunidade para ser feliz. Esse amor era muito diferente de tudo que tinha sentido. Era muito especial, muito forte. Nunca havia sentido algo semelhante.
As coisas iam muito bem, mas a vida tem os seus reveses. Victória antes de conhecer Santiago tinha tido alguns relacionamentos frustrados, estava desencantada com a vida. Era moça pobre, sem ter tido muitas oportunidades, principalmente para estudar. Muitas vezes fora marginalizada por causa de suas escolhas. Não tinha muitas posses e o trabalho na lanchonete às vezes mal dava para pagar as contas. Muitos começaram a dizer que se aproximara dele para ter uma vida estável, pois ele era um homem de certa forma abastado.
Antes de conhecê-lo se inscreveu num programa de bolsas de estudos e teria que partir para outro país. Para ela seria a grande mudança de vida. No começo de suas conversas com ele lhe contou, porém ele acabou se esquecendo. Entretanto, foi selecionada e teria que partir. O que fazer agora? Esse era o dilema de seu coração. Teria que contar isso para o seu amado. Como contar? Mas como contar?
Aquela noite fora muito difícil para Santiago. Alguma coisa o incomodava. Ele não era um homem de religião, mas também não duvidava das coisas espirituais. Deitou-se e adormeceu e teve um sonho muito intenso. Parecia que tudo era real. Estava acorrentado, alguém gritava uma sentença fatal. Gritava um nome que ele reconheceu ser o seu. Estava sendo condenado à morte por crime de subversão ao rei. Mas antes de ser preso e condenado tentou fugir. Se despediu do seu grande amor, que chorava copiosamente. Ele olhou nos olhos dela e movido pela comoção lhe disse:
__ Te procurei por toda a vida e te encontrei, mas agora tenho que partir, mas juro que te buscarei, custe o que custar.
Fizeram as juras de amor e se beijaram pela última vez. O olhar dela ficou em sua mente. Ele tentou a fuga, mas foi capturado. Foi levado para ouvir a sentença que o levaria à forca. Antes do carrasco executar a pena ele deu um grito dizendo:
__ Eu te encontrarei meu amor, te buscarei por todas as vidas.
Santiago acordou assustado com o sonho, transpirando, tomou água e não mais dormiu naquela noite. Não conseguira. O sonho não saia de sua cabeça. O que significava tudo aquilo, por que sonhara com uma vida no passado, como se fosse no presente? Por que havia feito aquela promessa? O coração apertou. Chorou um choro profundo, como se estivesse tido uma premonição. Passou o resto da noite em lágrimas.
Victória como de costume encontrou com ele, porém naquele dia estava diferente. Não estava alegre, estava contida. Não sabia como lhe contar, que iria partir. Amaram se, trocaram carinhos e ficaram por alguns minutos se olhando, Santiago cheio de emoção lhe disse:
__Meu amor agora entendo porque o teu olhar sempre me atraiu. Eu te procurei por toda a vida e agora te encontrei. Um dia lhe fiz um juramento que te procuraria por todas as vidas. Agora te encontrei meu amor.
O coração de Victória ficou apertado, teria que lhe contar que partiria. Seu amado estava feliz e agora teria que lhe contar. Respirou fundo e lhe contou o que iria acontecer. Ela iria estudar, iria embora. Pediu que a entendesse, que o amava, mas precisava dar um rumo à sua vida. Ele ficou estático, mudo. Assim ficou por minutos. O sonho lhe veio à cabeça. Lembrou-se do seu juramento. Lágrimas começaram a correr pelo seu rosto. Não sabia o que dizer. Então consentiu, abriria mão de sua felicidade pela felicidade de sua amada. Não se sentia no direito de lhe pedir que não fosse. Ela era jovem e deveria correr atrás de seus sonhos. Porém não acreditava no que estava acontecendo. Apenas consentiu, e não disse nada, apenas guardou os pensamentos para si. Resolutamente aceitou e passaram juntos os dias antes da viagem.
O olhar, agora ele entendia o fascínio pelo olhar de Victória, porque ele sentia se sentia atraído. Tudo fazia sentido para ele agora. Havia encontrado sua alma gêmea, aquela que numa outra vida havia amado intensamente. Mas mais uma vez iriam ser separados. Sentia a mesma dor que sentira quando sonhara naquela noite.
Um dia antes da partida de Victória encontraram-se para a despedida. Beijaram-se e agora era ela quem fazia a promessa de encontrá-lo de novo. Ela dizia que voltaria para ele, que viveriam dias felizes. Ele firmemente a olhou nos olhos e com palavras que saiam da alma, mais uma vez lhe disse:
__ Passei muito tempo te procurando, te procurei em muitos lugares, em muitas vidas. Nunca deixei de te procurar, pois foi o juramento que lhe fiz antes de ser preso e sentenciado à morte. Te procurei tanto e agora te encontrei e não posso deixa-la partir sem que saiba que o nosso amor é além da vida. Nos encontramos, agora vá, já cumpri o juramento, seja feliz.
Tomado de muita emoção disse todas essas palavras, agora era ela quem ficava estática e sem voz, como se tivesse sido despertada de um sono profundo. Ficou extremamente emocionada. Não conteve o choro. Saiu dizendo que o encontraria no aeroporto para a despedida.
Ele não foi ao aeroporto, mandou uma carta se desculpando e desejando boa sorte, que não suportaria a despedida. Em vez disto foi à lanchonete tomar o seu café e lembrar das manhãs felizes que passara ali com sua amada. Queria sentir a atmosfera de amor que o lugar guardava. Ali permaneceu sentado absorto em suas lembranças que se esqueceu de tudo ao seu redor. De repente sentiu um perfume familiar e uma mão lhe tocar nos ombros e uma voz sussurrar em seu ouvido:
__ Voltei meu amor, me lembrei da promessa que me fez. Esperei por você em todos os lugares. Te esperei em outras vidas. Não poderia ir mais. Esperei tanto pelo nosso encontro eterno. Voltei para viver nesta vida o que não pudemos viver em outras. Quero viver cada segundo, cada minuto e cada dia o nosso amor, sem perda de tempo. Vamos cumprir a nossa promessa eterna.

                                                                       José Geraldo da Silva