É possível que, através da leitura
de obras literárias brasileiras, criam-se as condições propícias para esboçar
um estudo histórico da formação da sociedade, dos valores éticos e morais que abarcam
a memória de um povo. É por meio da leitura da palavra que se pode conduzir a
uma interpretação do mundo; e essa palavra está inscrita no discurso literário,
com seu contexto histórico, e no uso da língua escrita, como registro da
memória para a formação humanística do cidadão.
Segundo Marisa Lajolo (1982) “ler
não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido do texto. É, a partir
do texto, ser capaz de atribuir-lhe significado, conseguir relacioná-lo a todos
os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura
que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura,
ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista.”
Numa perspectiva bakhtiniana, a
figura do destinatário se instala com o próprio movimento de produção do texto,
na medida em que o autor orienta sua fala tendo em vista o público alvo. O
texto é assim, uma potencialidade significativa que se mantém em dia, levado a
efeito por um leitor.
“A leitura de um texto literário,
com suas lacunas que permitem a participação do leitor, torna a literatura um
discurso carregado de vivência íntima e profunda, suscita no leitor o desejo de
prolongar ou renovar as experiências que veicula; constitui um elo privilegiado
entre o homem e o mundo; supre suas fantasias; desencadeia suas emoções; ativa
o intelecto, trazendo e produzindo conhecimento; é criação; é uma espécie de
irrealidade que torna densa a realidade; torna o leitor observador de si
mesmo.” (BRANDÃO e MICHELETTI, 1997)
Assim, a obra literária é tanto mais
rica, densa e duradoura quanto mais internamente o criador participar da
dialética que está vivendo a sua própria cultura. Se os autores não tivessem
atravessado longa e penosamente as barreiras ideológicas e psicológicas que os
separavam do cotidiano ou do imaginário popular, as obras nunca poderiam ter
sido produzidas.
Enfocando, especificamente, a
literatura, pode se afirmar que se formou da palavra littera, ou seja, letra
ou caráter da escrita ou escritura. Passa-se a conceituar literatura como a
arte que concerne às letras, a arte de ler e escrever. A princípio, na sua
forma, designava tudo o que era escrito: obras de caráter científico,
teológico, filosófico, literário. Após várias e seguidas transformações sociais
e históricas, tomou os seguintes significados: primeiro, no sentido etimológico
formal – a literatura é vista enquanto bibliografia (médica, econômica,
maneirista) e segundo, no sentido etimológico conteudístico, como uma forma de
conhecimento (estético ou artístico, por oposição ao racional e ao científico).
A literatura, enquanto conjunto de obras escritas, confundia-se com a própria
história da cultura. Contudo, não é possível desvincular o entendimento do
fenômeno literário da dinâmica da história e das suas condições
socioeconômicas.
A sociedade (como um todo) é formada
por homens que a constituem, têm ideias, que formam grupos sociais, cada qual
defendendo seu ponto de vista em relação a essas ideias, que se somam ou
divergem. Estabelece-se, dessa maneira, um sistema de atitudes que tem como
objetivo a forma de relacionamentos; ou seja, o comportamento social entre os
agentes sociais. A ideologia, assim, constitui-se como a combinação de dois
sistemas: o de atitudes e o de ideias.
Nas obras literárias, a ideologia
apresenta um valor fundamental ao registrar os acontecimentos de uma época, de
um determinado lugar (coisas que acontecem naquele momento, naquele determinado
lugar). E a literatura, como produto cultural, é o meio de transmissão cultural
e histórico, e o escritor, por sua vez, torna-se um filtro ideológico, um
sujeito que não aparece no discurso, não obstante esteja presente nele.
Enfim, a literatura é o produto do
homem que faz a História e a transforma, está contida na história e a contém. O
homem detém o poder sobre seu passado nos registros de suas memórias e os
textos literários são a reconstrução transformada das ações do homem.
Bakhtin (1919) definia a arte como
um evento, como a execução de uma troca, o choque de valores entre uma obra e
sua audiência. Se a literatura é arte, deve ser vista no seu todo, na sua
integridade total, “e não se localiza no artefato e tampouco nas psiques do criador e do
contemplador consideradas em separado: abarca todos esses fatores. É uma forma
especial de arte. A arte participa do fluxo unitário da vida social, reflete a
base econômica comum e entra em interação e troca com outras formas de
comunicação.”
A partir dessas concepções,
busca-se, em alguns autores da literatura brasileira com suas respectivas obras,
a figura do homem no seu aspecto social, já que pode ser um dos meios de que se
vale para conhecer a realidade. Alguns temas, como a terra, os conflitos
sociais, a busca de salvação através do processo migratório/imigratório,
determinam, assim como no arcadismo (fugere urben), o homem que busca a
interioridade da sua essência para melhor saber de si e situar-se.
Diante dessas considerações, na obra
Vidas
secas, de Graciliano Ramos, configura-se o cotidiano nordestino em toda
sua rudeza: o homem consumido pela terra que deveria lhe dar o sustento vital:
a água, que se torna elemento de sua devassidão, é a mãe de sua angústia.
O patriarca Fabiano, nordestino
pobre, ignorante, busca a sobrevivência, uma perspectiva de vida que talvez
possa ser encontrada na cidade: “(...) Uma cidade grande, cheia de pessoas
fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos,
acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer?
(...) Chegaria a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela.”
Instala-se, então, o conflito: o
sonho ou a realidade? Fabiano é o homem que foge das injustiças sociais, da
miséria, da fome, da desigualdade, da seca que o transforma num sub-humano
perdido num labirinto de coisas e fatos; é a constatação de um sentimento de
rejeição – a terra estéril torna-o um ser também estéril, improdutivo. O homem
não pode mais olhar a terra, pois é sua própria projeção, revelando seu caráter
fraco diante das incertezas da vida. Ali não consegue fazer nascer mais nada.
Graciliano Ramos registra nessa obra o homem social, um protagonista-problema
que não “aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo.” (BOSI, 1994)
Se em Vidas Secas observa-se o
homem rejeitando a terra e, por conseguinte, rejeitando um poder que a terra
lhe conferia e lhe tomara, na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, o
homem busca com a própria vida perpetuar esse poder pela propriedade da terra,
pois esta lhe confere um conjunto de direitos e de reconhecimento – uma
ideologia sócio-política num período de transição de poder (Monarquia e
República). A literatura de Euclides quebra preconceitos que conferiam ao homem
subdesenvolvido um caráter despido de vontade:
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não
tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua
aparência, entretanto, (...) revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável
(...). É desgracioso, desengonçado, torto. (...), reflete no aspecto a fealdade
típica dos fracos. (...) Basta o aparecimento de qualquer incidente (...)
transfigura-se. (...) reponta(...) um titã acobreado e potente(...) de forças e
agilidade extraordinárias.”
Surge, então, Antônio Conselheiro,
um líder religioso fanático, mas a imagem perfeita do Salvador que presenteia
seus seguidores com a terra prometida – Canudos -; a propriedade da terra
defendida até o último homem. A força da terra seca o homem; o sangue em pó
mistura-se ao pó da terra, fecundando-a; e essa terra infértil sublima-se à
força humana, sorvendo a vida e gerando homens ressecados e fortalecidos pelo
poder que essa terra lhes dá: um sertão que oferece o direito de propriedade,
concedendo-lhe uma identidade.
Já Guimarães Rosa apresenta o homem
em seu aspecto metafísico; o eu sertanejo como o resultado de uma soma de
sociais produzida por uma interação social. Carlos Eduardo Pereira Theobaldo,
em seu trabalho Pequeno Mosaico do Sertão em Guimarães Rosa, explica que “(...)
em Riobaldo encontramos todas as paixões humanas, o mítico e o real, o sonho e
a verdade, nessa busca incessante que é o homem.”
O sertão de Guimarães Rosa
transforma o homem que, por sua vez, se transforma para garantir o poder sobre
a terra. O sol do sertão resseca a terra e o homem, porém é a luz que irriga o
coração do sertanejo.
Em síntese, Euclides apresenta o
poder social; Graciliano, o homem mudando o sertão e Guimarães, o sertão que
forma o homem. Todos esses homens se socializam usando o mesmo instrumento: a
língua, viva e mutante em que seu usuário é identificado e estratificado
socialmente.
Em contrapartida, os romances
urbanos, como os de Aluísio Azevedo (Cortiço), Machado de Assis (D. Casmurro) e
Alcântara Machado (Brás, Bexiga e Barra Funda), apresentam o homem urbano que
não é movido pela terra, mas pelas convenções sociais, moldado e impelido pela
busca de uma ascensão para satisfazer o outro – uma satisfação própria pela
satisfação do outro em si. A terra é o caminho para alcançar seu “status quo”.
Machado de Assis apresenta o homem
que sofre as pressões dos padrões convencionais da época. A terra, agora, é o
espaço social. Em suas obras, a cidade de Petrópolis é retratada como a mais
europeia do Império. “Diziam os cronistas que era muito, muito
chique... ideal para escapar ao calor (e aos problemas de correntes de falta de
higiene, água, esgotos... do Rio.” (Livro Vivo)
Na obra de Aluízio de Azevedo,
primordialmente em O Cortiço, observa-se a luta dos excluídos, luta essa demarcada
pelo chão do cortiço, um sertão urbano. As pessoas aspiram a uma ascensão
social, desprendendo-se do casulo colonial e borboleteando-se em uma nação
independente.
Alcântara Machado apresenta uma
comunidade industrializada, com outro tipo de homem, formado pelo universo da
máquina. Assim, surgem os guetos do Bexiga, do Brás e da Barra Funda. A
sociedade dominante agora é a sociedade dominada (imigrantes), e como operário
o homem busca a posse da terra, através da aquisição de casa e de carro
próprios, enfim, a independência econômica, sempre um modelo de terra como
ascensão social.
Dentro desse processo literário
instala-se a fusão entre sertão e metrópole: o migrante/imigrante, em busca de
trabalho, torna-se o produto dos cortiços e dos guetos. E a língua como
expressão individual, possibilita ao homem e ao seu ambiente social e nacional
uma aceitação sincrônica e diacrônica: “existe o falar porque existem indivíduos
que pensam e sentem, e existem línguas como entidades históricas e como
sistemas e normas ideais, porque a linguagem não é só expressão, finalidade em
si mesma, senão a comunicação, finalidade instrumental, expressão para o outro,
cultura objetivada historicamente e que transcende ao indivíduo.”
(CUNHA, 1972:74)
Em suma, é a terra que forja o homem
e sua identidade nacional. Numa finalização antropofágica, o homem come as
virtudes para formar virtudes; a terra come o homem para formar um novo homem
que é, antes de tudo, um forte.
Língua, cultura e literatura formam
um liame indissolúvel, dimensionando a tríade discursiva que processa e
sedimenta a memória e a identidade de um povo.
Portanto, a leitura é um instrumento
valiosíssimo para resgatar essa tríade. Há um mito que necessita ser
desmitificado: que o brasileiro não lê. Pode-se, aqui, parafrasear um texto do
apóstolo Paulo, quando afirma: “Como crerão se não for anunciado o
Evangelho”. Basta trocar os
verbos: “Como lerão se não houver quem os incentive.”
Infelizmente, a escola tem perdido o
seu papel de formadora de cidadão crítico e consciente. Professores que não
leem não são exemplos para o incentivo da leitura. Criam-se demasiadas justificativas
para a falta de leitura: falta de tempo devido às jornadas exaustivas
enfrentadas pelos educadores, condições financeiras desfavoráveis pelo alto
preço dos livros, poucas bibliotecas, enfim, várias desculpas. Entretanto,
muitos não admitem que não gostam de ler, que não têm interesse. Hoje, o mundo
está informatizado, é preciso apenas acessar a Internet para se obter resumos e
obras literárias. Todavia, nada pode substituir o tato, o contato íntimo que o
livro desperta enquanto papel.
Diante desse pensamento, “a
leitura de obras literárias institui o homem num processo de compreensão e
intelecção do mundo e de si mesmo, pois diante do texto o homem não é passivo,
ele ressuscita sua história num trabalho de desconstrução e reconstrução
textuais. Essa interação leitor-texto se faz presente desde a origem do homem.
A concretude do texto se estabelece no movimento da leitura, num trabalho de elaboração
dos sentidos: se em sua superfície não se diz tudo, as suas lacunas
(implícitos, pressupostos e subentendidos) deixam para o leitor o trabalho de
preenchimento, num movimento de expansão e filtragem. A obra literária é um
depositário da memória coletiva.” (BRANDÃO e MICHELETTI)
Nessa perspectiva, é primordial
atestar o papel da escola, pois é através do discurso do professor que se
estabelecem as condições propícias para o desenvolvimento da cidadania, do
sujeito que aprende a pensar e pensa para aprender, formando indivíduos para a
necessária adaptação ao novo, com a real possibilidade democrática de
universalização e acessibilidade ao conhecimento.
É por meio da leitura da palavra que
se pode conduzir a uma interpretação de mundo. E essa palavra está inscrita no
discurso literário, com seu contexto histórico, e no uso da língua escrita,
como registros da memória para a formação humanística do cidadão.
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Klick Editora: São Paulo, s.d.
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“Teoria e Prática da Leitura”, in Aprender e Ensinar com textos didáticos e paradidáticos.
São Paulo: Cortez, 1997.
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Rio de Janeiro: Record, 2001.
ROSA, João Guimarães. Grande
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AUTORIA
MIRANDA,
Dhiancarlo de Oliveira; MOREIRA;
Fatima Aparecida N.M.; SILVA José
Geraldo da; RIGOLON Wilma. Extraído
do Artigo: “Língua – Cultura – Literatura – Tríade discursiva que processa e
sedimenta a memória e a identidade de um povo”. São Paulo: I Congresso de
Humanas da UNICSUL.2004.