sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS NA SALA DE AULA



            É possível que, através da leitura de obras literárias brasileiras, criam-se as condições propícias para esboçar um estudo histórico da formação da sociedade, dos valores éticos e morais que abarcam a memória de um povo. É por meio da leitura da palavra que se pode conduzir a uma interpretação do mundo; e essa palavra está inscrita no discurso literário, com seu contexto histórico, e no uso da língua escrita, como registro da memória para a formação humanística do cidadão.
            Segundo Marisa Lajolo (1982) “ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido do texto. É, a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significado, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista.”
            Numa perspectiva bakhtiniana, a figura do destinatário se instala com o próprio movimento de produção do texto, na medida em que o autor orienta sua fala tendo em vista o público alvo. O texto é assim, uma potencialidade significativa que se mantém em dia, levado a efeito por um leitor.
            “A leitura de um texto literário, com suas lacunas que permitem a participação do leitor, torna a literatura um discurso carregado de vivência íntima e profunda, suscita no leitor o desejo de prolongar ou renovar as experiências que veicula; constitui um elo privilegiado entre o homem e o mundo; supre suas fantasias; desencadeia suas emoções; ativa o intelecto, trazendo e produzindo conhecimento; é criação; é uma espécie de irrealidade que torna densa a realidade; torna o leitor observador de si mesmo.” (BRANDÃO e MICHELETTI, 1997)
            Assim, a obra literária é tanto mais rica, densa e duradoura quanto mais internamente o criador participar da dialética que está vivendo a sua própria cultura. Se os autores não tivessem atravessado longa e penosamente as barreiras ideológicas e psicológicas que os separavam do cotidiano ou do imaginário popular, as obras nunca poderiam ter sido produzidas.
            Enfocando, especificamente, a literatura, pode se afirmar que se formou da palavra littera, ou seja, letra ou caráter da escrita ou escritura. Passa-se a conceituar literatura como a arte que concerne às letras, a arte de ler e escrever. A princípio, na sua forma, designava tudo o que era escrito: obras de caráter científico, teológico, filosófico, literário. Após várias e seguidas transformações sociais e históricas, tomou os seguintes significados: primeiro, no sentido etimológico formal – a literatura é vista enquanto bibliografia (médica, econômica, maneirista) e segundo, no sentido etimológico conteudístico, como uma forma de conhecimento (estético ou artístico, por oposição ao racional e ao científico). A literatura, enquanto conjunto de obras escritas, confundia-se com a própria história da cultura. Contudo, não é possível desvincular o entendimento do fenômeno literário da dinâmica da história e das suas condições socioeconômicas.
            A sociedade (como um todo) é formada por homens que a constituem, têm ideias, que formam grupos sociais, cada qual defendendo seu ponto de vista em relação a essas ideias, que se somam ou divergem. Estabelece-se, dessa maneira, um sistema de atitudes que tem como objetivo a forma de relacionamentos; ou seja, o comportamento social entre os agentes sociais. A ideologia, assim, constitui-se como a combinação de dois sistemas: o de atitudes e o de ideias.
            Nas obras literárias, a ideologia apresenta um valor fundamental ao registrar os acontecimentos de uma época, de um determinado lugar (coisas que acontecem naquele momento, naquele determinado lugar). E a literatura, como produto cultural, é o meio de transmissão cultural e histórico, e o escritor, por sua vez, torna-se um filtro ideológico, um sujeito que não aparece no discurso, não obstante esteja presente nele.
            Enfim, a literatura é o produto do homem que faz a História e a transforma, está contida na história e a contém. O homem detém o poder sobre seu passado nos registros de suas memórias e os textos literários são a reconstrução transformada das ações do homem.
            Bakhtin (1919) definia a arte como um evento, como a execução de uma troca, o choque de valores entre uma obra e sua audiência. Se a literatura é arte, deve ser vista no seu todo, na sua integridade total, “e não se localiza no artefato e tampouco nas psiques do criador e do contemplador consideradas em separado: abarca todos esses fatores. É uma forma especial de arte. A arte participa do fluxo unitário da vida social, reflete a base econômica comum e entra em interação e troca com outras formas de comunicação.”
            A partir dessas concepções, busca-se, em alguns autores da literatura brasileira com suas respectivas obras, a figura do homem no seu aspecto social, já que pode ser um dos meios de que se vale para conhecer a realidade. Alguns temas, como a terra, os conflitos sociais, a busca de salvação através do processo migratório/imigratório, determinam, assim como no arcadismo (fugere urben), o homem que busca a interioridade da sua essência para melhor saber de si e situar-se.
            Diante dessas considerações, na obra Vidas secas, de Graciliano Ramos, configura-se o cotidiano nordestino em toda sua rudeza: o homem consumido pela terra que deveria lhe dar o sustento vital: a água, que se torna elemento de sua devassidão, é a mãe de sua angústia.
            O patriarca Fabiano, nordestino pobre, ignorante, busca a sobrevivência, uma perspectiva de vida que talvez possa ser encontrada na cidade: “(...) Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis   e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? (...) Chegaria a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela.”
            Instala-se, então, o conflito: o sonho ou a realidade? Fabiano é o homem que foge das injustiças sociais, da miséria, da fome, da desigualdade, da seca que o transforma num sub-humano perdido num labirinto de coisas e fatos; é a constatação de um sentimento de rejeição – a terra estéril torna-o um ser também estéril, improdutivo. O homem não pode mais olhar a terra, pois é sua própria projeção, revelando seu caráter fraco diante das incertezas da vida. Ali não consegue fazer nascer mais nada. Graciliano Ramos registra nessa obra o homem social, um protagonista-problema que não “aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo.” (BOSI, 1994)
            Se em Vidas Secas observa-se o homem rejeitando a terra e, por conseguinte, rejeitando um poder que a terra lhe conferia e lhe tomara, na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, o homem busca com a própria vida perpetuar esse poder pela propriedade da terra, pois esta lhe confere um conjunto de direitos e de reconhecimento – uma ideologia sócio-política num período de transição de poder (Monarquia e República). A literatura de Euclides quebra preconceitos que conferiam ao homem subdesenvolvido um caráter despido de vontade:
            “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, (...) revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável (...). É desgracioso, desengonçado, torto. (...), reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. (...) Basta o aparecimento de qualquer incidente (...) transfigura-se. (...) reponta(...) um titã acobreado e potente(...) de forças e agilidade extraordinárias.”
            Surge, então, Antônio Conselheiro, um líder religioso fanático, mas a imagem perfeita do Salvador que presenteia seus seguidores com a terra prometida – Canudos -; a propriedade da terra defendida até o último homem. A força da terra seca o homem; o sangue em pó mistura-se ao pó da terra, fecundando-a; e essa terra infértil sublima-se à força humana, sorvendo a vida e gerando homens ressecados e fortalecidos pelo poder que essa terra lhes dá: um sertão que oferece o direito de propriedade, concedendo-lhe uma identidade.
            Já Guimarães Rosa apresenta o homem em seu aspecto metafísico; o eu sertanejo como o resultado de uma soma de sociais produzida por uma interação social. Carlos Eduardo Pereira Theobaldo, em seu trabalho Pequeno Mosaico do Sertão em Guimarães Rosa, explica que “(...) em Riobaldo encontramos todas as paixões humanas, o mítico e o real, o sonho e a verdade, nessa busca incessante que é o homem.”
            O sertão de Guimarães Rosa transforma o homem que, por sua vez, se transforma para garantir o poder sobre a terra. O sol do sertão resseca a terra e o homem, porém é a luz que irriga o coração do sertanejo.
            Em síntese, Euclides apresenta o poder social; Graciliano, o homem mudando o sertão e Guimarães, o sertão que forma o homem. Todos esses homens se socializam usando o mesmo instrumento: a língua, viva e mutante em que seu usuário é identificado e estratificado socialmente.
            Em contrapartida, os romances urbanos, como os de Aluísio Azevedo (Cortiço), Machado de Assis (D. Casmurro) e Alcântara Machado (Brás, Bexiga e Barra Funda), apresentam o homem urbano que não é movido pela terra, mas pelas convenções sociais, moldado e impelido pela busca de uma ascensão para satisfazer o outro – uma satisfação própria pela satisfação do outro em si. A terra é o caminho para alcançar seu “status quo”.
            Machado de Assis apresenta o homem que sofre as pressões dos padrões convencionais da época. A terra, agora, é o espaço social. Em suas obras, a cidade de Petrópolis é retratada como a mais europeia do Império. “Diziam os cronistas que era muito, muito chique... ideal para escapar ao calor (e aos problemas de correntes de falta de higiene, água, esgotos... do Rio.” (Livro Vivo)
            Na obra de Aluízio de Azevedo, primordialmente em O Cortiço, observa-se a luta dos excluídos, luta essa demarcada pelo chão do cortiço, um sertão urbano. As pessoas aspiram a uma ascensão social, desprendendo-se do casulo colonial e borboleteando-se em uma nação independente.
            Alcântara Machado apresenta uma comunidade industrializada, com outro tipo de homem, formado pelo universo da máquina. Assim, surgem os guetos do Bexiga, do Brás e da Barra Funda. A sociedade dominante agora é a sociedade dominada (imigrantes), e como operário o homem busca a posse da terra, através da aquisição de casa e de carro próprios, enfim, a independência econômica, sempre um modelo de terra como ascensão social.
            Dentro desse processo literário instala-se a fusão entre sertão e metrópole: o migrante/imigrante, em busca de trabalho, torna-se o produto dos cortiços e dos guetos. E a língua como expressão individual, possibilita ao homem e ao seu ambiente social e nacional uma aceitação sincrônica e diacrônica: “existe o falar porque existem indivíduos que pensam e sentem, e existem línguas como entidades históricas e como sistemas e normas ideais, porque a linguagem não é só expressão, finalidade em si mesma, senão a comunicação, finalidade instrumental, expressão para o outro, cultura objetivada historicamente e que transcende ao indivíduo.” (CUNHA, 1972:74)
            Em suma, é a terra que forja o homem e sua identidade nacional. Numa finalização antropofágica, o homem come as virtudes para formar virtudes; a terra come o homem para formar um novo homem que é, antes de tudo, um forte.
            Língua, cultura e literatura formam um liame indissolúvel, dimensionando a tríade discursiva que processa e sedimenta a memória e a identidade de um povo.
            Portanto, a leitura é um instrumento valiosíssimo para resgatar essa tríade. Há um mito que necessita ser desmitificado: que o brasileiro não lê. Pode-se, aqui, parafrasear um texto do apóstolo Paulo, quando afirma: “Como crerão se não for anunciado o Evangelho”.  Basta trocar os verbos: “Como lerão se não houver quem os incentive.”
            Infelizmente, a escola tem perdido o seu papel de formadora de cidadão crítico e consciente. Professores que não leem não são exemplos para o incentivo da leitura. Criam-se demasiadas justificativas para a falta de leitura: falta de tempo devido às jornadas exaustivas enfrentadas pelos educadores, condições financeiras desfavoráveis pelo alto preço dos livros, poucas bibliotecas, enfim, várias desculpas. Entretanto, muitos não admitem que não gostam de ler, que não têm interesse. Hoje, o mundo está informatizado, é preciso apenas acessar a Internet para se obter resumos e obras literárias. Todavia, nada pode substituir o tato, o contato íntimo que o livro desperta enquanto papel.
            Diante desse pensamento, “a leitura de obras literárias institui o homem num processo de compreensão e intelecção do mundo e de si mesmo, pois diante do texto o homem não é passivo, ele ressuscita sua história num trabalho de desconstrução e reconstrução textuais. Essa interação leitor-texto se faz presente desde a origem do homem. A concretude do texto se estabelece no movimento da leitura, num trabalho de elaboração dos sentidos: se em sua superfície não se diz tudo, as suas lacunas (implícitos, pressupostos e subentendidos) deixam para o leitor o trabalho de preenchimento, num movimento de expansão e filtragem. A obra literária é um depositário da memória coletiva.” (BRANDÃO e MICHELETTI)
            Nessa perspectiva, é primordial atestar o papel da escola, pois é através do discurso do professor que se estabelecem as condições propícias para o desenvolvimento da cidadania, do sujeito que aprende a pensar e pensa para aprender, formando indivíduos para a necessária adaptação ao novo, com a real possibilidade democrática de universalização e acessibilidade ao conhecimento.
            É por meio da leitura da palavra que se pode conduzir a uma interpretação de mundo. E essa palavra está inscrita no discurso literário, com seu contexto histórico, e no uso da língua escrita, como registros da memória para a formação humanística do cidadão.

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Machado de. Dom casmurro. São Paulo: ática, 1999.
AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Ática,1997.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1972.
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
CLARK, Katerina e HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Editora Perspectiva,1998.
CUNHA, Celso. Língua portuguesa e realidade brasileira. São Paulo: Edusp, 1972.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões, campanha de Canudos. Rio de Janeiro; editora Francisco Alves, Publifolha, 2000.
CARDOSO, Silvia Helena Barbi. Discurso e ENSINO. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
GERALDI, João Wanderley. (org) O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1998.
MACHADO, Antônio Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. Coleção Vestibular. Estadão. Klick Editora: São Paulo, s.d.
MICHELETTI, Guaraciaba e BRANDÃO, Helena N. “Teoria e Prática da Leitura”, in Aprender e Ensinar com textos didáticos e paradidáticos. São Paulo: Cortez, 1997.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2001.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1986.



AUTORIA
MIRANDA, Dhiancarlo de Oliveira; MOREIRA; Fatima Aparecida N.M.; SILVA José Geraldo da; RIGOLON Wilma. Extraído do Artigo: “Língua – Cultura – Literatura – Tríade discursiva que processa e sedimenta a memória e a identidade de um povo”. São Paulo: I Congresso de Humanas da UNICSUL.2004.